27 maio 2021

te dedico, amigo


tem uma história que gosto muito de lembrar da minha época de livreira. ela envolve a história dos livros. mas não aquela lá escrita, pelo autor e tal, mas a história de como aquele livro chegou até você. então, é como se cada livro tivesse, no mínimo, duas histórias: a história de dentro dele, e a de fora. 

nesse sentido, os sebos em que trabalhei ajudavam na montagem dessa 'história da história', porque em sebo sebemos, digo, sabemos que juntas vão as anotações, marcações e elas, as dedicatórias.

um dos enredos que criei na minha cabeça foi o de um casal de namoradas que se separou. uma delas, mônica, foi atrás de se desfazer das lembranças da ex, e isso incluía o livro que dela tinha ganhado. livro literalmente dela, uma vez que era a autora dedicando o livro para a companheira. ludmila. escrevia sobre poesia erótica. eu, lá no sebo, li a dedicatória de ludmila para a namorada mônica, e... bem, se o livro estava lá é porque algo tinha chegado ao fim.

e assim inventei algumas novelas das vidas dos outros para mim.

uma das mais belas cenas nessa ilha de edição que são nossas lembranças, foi a que encontrei em 'canto memorial', um livro onde luciano maia mapeia poeticamente a tragédia de pablo neruda. naquela folha de rosto, estava escrito:

"para a ana e o rubens, com o abraço do luciano maia. 1984".

em seguida, mais à esquerda:

"para outros. 2008".

achei a coisa mais linda essa conversa entre as dedicatórias, essa poesia incluída na percepção sutil desse alguém que surge 24 anos depois.

no futuro, estaria eu mesma participando dessa corrente espontânea de dedicar:

"agora, para o ângelo. 2015".

e o acaso não poderia ter reservado nome melhor a esse livro que eu daria ao meu amigo. ângelo é um ser fascinado pela memória, intrigado em saber o que é isso da gente que lembra e não lembra, e porque, quando e como. em uma de nossas prosaicas conversas, ele disse um dia que "o problema é que chega um momento que, conforme o tempo passa e envelhecemos, não se esquecem mais algumas coisas." como se se referisse às responsabilidades do adulto que não age mais tanto sem pensar e, logo, sem lembrar. 

ângelo também é quem revisou minhas poesias e escritos antigos, me ajudando numa caseira curadoria daquilo que eu poderia requentar e levar adiante como escritora, e, mais ou menos assim, surgiu esse blog em que você está agora. se é que tem alguém aqui lendo. alguém além do ângelo, claro.

mas, para você que eu sei que está lendo, querido, caro, amigo e camarada ângelo: muito obrigada por existir e, apesar das distâncias, nunca estar distante. aprendo sobre envelhecer, sobre memória, e sobre amizade com você.

ah, 

e feliz aniversário!

"agora, de novo, para o ângelo. 2021".


23 maio 2021

eu, laura e a velhice

uma sensação nova tem me acompanhado ultimamente quando penso na chegada do meu aniversário: parece que vou fazer 10 anos de uma vez só. é como se eu estivesse com 20 anos e, em 3 de julho, amanhecerei com 30. alguém me entende?

quero achar uma forma de relacionar essa sensação com como reflito sobre o meu envelhecer e com o meu imaginar-me velha -- tarefa que eu mesma me dei depois de mensagens trocadas com laura, uma colega minha da psicanálise que em muito se interessa pelo assunto. deve ser porque ela tem algum superpoder e não envelhece... eita, menina constante que mora naquela aparência mais linda da laura!

aparência, aliás, pode ser uma boa palavra para iniciar. acho que, ineditamente, começo a ver o tempo passando no meu corpo, rosto e traços. a idade nunca era uma questão na minha cara (nos, ao menos, dois sentidos dessa frase), mas passou a ficar mais flagrante com marcas de expressão, olheiras, rugas e verrugas por mim. o espelho ou a câmera me olhando me devolvem: "você está virando outra pessoa."

para além do físico, o descompasso dos anos comigo sempre foi presente:
"-- você não parece tão nova!" ;
"-- nossa, mas eu achei que você fosse mais velha!" ;
"-- ah, então você tem 29 ainda?",
são das frases mais comuns quando revelar a idade surge durante uma conversa sobre algum outro assunto. 
o que sinto acompanhado desses comentários é um tipo de credibilidade negociada a partir da idade que revelei. mas, como diz uma frase que me marcou, "a cabeça pensa a partir de onde o pé pisa", e meus pés ficaram gastos muito cedo, calejados muito cedo, envelhecidos muito cedo.

acontece que percebo um envelhecimento que se esgotou. como se a infância e adolescência encurtadas que precisei ter retiraram algum ingrediente da passagem do tempo e, agora, vivo atrás de restaurar etapas em mim de espontaneidade, ingenuidade, inocência, rebeldia, crítica, e outros afetos dessas fases (que, se não assimiladas e sem seus lutos narcísicos, permanecem ditando inconsciências em nós).

o que estou querendo dizer é que a quantidade de sofrimento talvez seja o que determina envelhecer. não raro ouvirmos sobre pessoas da mesma idade que em muito diferem no seu aspecto de conservação que uma é "mais sofrida" que a outra. e eu sofri bastante até pouco tempo. hoje, junto com o Gil, eu quase que "não sei sofrer, não sei chorar, só sei me conformar". realmente, conformado e inconformado costumam ser adjetivos respectivos para velhos e jovens.

então, quando fito comigo daqui mais 30 anos, imagino uma suzana restaurada, desejante, que aprendeu (começando aqui) a envelhecer nem antes e nem depois, mas enquanto o tempo passa.